Por Cleidiana Ramos*
História de Luiz Gonzaga Pereira aponta para o drama de quem passa a vida invisível para o Estado
A segunda página da edição de A TARDE de 24 de julho de 1929 trouxe uma reportagem sobre Luiz Gonzaga Pereira. Natural de São Sebastião do Passé, ele afirmou que tinha 109 anos. O que o levou à redação de A TARDE foi a esperança de conseguir um registro que servisse como prova da sua idade, pois ele não possuía documentos. Após 93 anos desse registro em A TARDE, histórias como a de Luiz Gonzaga, infelizmente, continuam comuns: brasileiras e brasileiros passam suas vidas invisíveis para o Estado, pois não possuem documento oficial, situação que foi até tema da redação do Enem no ano passado.
Luiz Gonzaga procurou a redação de A TARDE devido à recomendação do então arcebispo de Salvador, o cardeal Dom Augusto Álvaro da Silva.
“Mandaram-me subir. Beijei a mão do sr. arcebispo, que é mais moço do que eu, disse sorrindo. Elle me aconselhou a vir a A TARDE. Se ella dissesse que eu tinha 109 annos, ninguém duvidará”. (A TARDE 24/7/1929, p.2)
Um homem negro, como mostra o clichê que acompanha a reportagem, Luiz Gonzaga, possivelmente, estava longe do acesso a direitos básicos de cidadania. Para que a sua palavra valesse, afinal não dispunha de documentos, a recomendação de uma autoridade eclesiástica foi que procurasse o jornal.
A disposição de Luiz Gonzaga de ir bater à porta do palácio do arcebispo coincide com o papel que, durante muito tempo, foi desenvolvido pela Igreja Católica, desde o período colonial, de fazer os registros de nascimentos por meio do batismo. Tanto que os que não tinham o catolicismo como religião, caso de estrangeiros, especialmente ingleses, ficavam na dependência de legislações que nem sempre se firmavam.
Com a mudança da forma de governo no Brasil da monarquia para a República, foi instituída a obrigatoriedade do registro de nascimento, casamento e morte em unidades cartoriais ligadas ao Estado. Aliás, o fim do reconhecimento de casamentos que fossem celebrados apenas no âmbito religioso foi um dos motivos da pregação de Antônio Conselheiro contra essa forma republicana e uma das origens da acusação de que o movimento de Canudos era monarquista.
Como ironia, uma das histórias contadas por Luiz Gonzaga sobre a sua trajetória pessoal foi a de que havia lutado em Canudos. O texto curto não dá informações de como foi a sua participação nessa luta.
“Duas cousas, entretanto, faz questão o velho Luiz: de ter sido um bom vaqueiro e de realmente contar 109 anos de vida. Não havia garrote que lhe escapasse do laço. Mas o velho não tem a sua certidão de edade. Por isso foi procurar o sr. arcebispo no palácio”. (A TARDE 24/7/1929, p.2).
Invisíveis
Com o enunciado “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, o tema da redação do Enem de 2021 surpreendeu muitos dos concorrentes, afinal essa não é uma questão que tem debate com alta visibilidade. Mas nem por isso deixa de ser importante, afinal sem esse documento não dá para tirar outros, como o RG. que é mais conhecido como “identidade”.
É com base nos dados do registro civil, enviados pelos Cartórios, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, reúne informações sobre nascimentos, mas também casamentos e óbitos.
Se não há registro de nascimento, há invisibilidade para o Estado, principalmente no âmbito das políticas públicas. Na pandemia, por exemplo, algumas pessoas ficaram sem aceso ao Auxílio Emergencial por não dispor desse documento e consequentemente dos outros.
“Nós temos milhões de indocumentadas e indocumentados no Brasil, ou seja, pessoas que não têm documentos. E isso diz respeito à própria existência da pessoa. Uma pessoa sem registro civil de nascimento é uma pessoa que oficialmente para o Estado não existe. Isso vai interferir em vários aspectos, em várias dimensões de direitos como por exemplo, o direito à memória dessas pessoas, o direito à identidade com todo o sentido que tem essa palavra. Não é só o direito ao nome, mas à própria identidade de se sentir parte de um país, de se sentir parte de uma sociedade, de se sentir efetivamente cidadã ou cidadão”, avalia Livia Sant’Anna Vaz, promotora de justiça do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e titular da Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, sediada em Salvador.
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e nomeada, em 2020, como uma das pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na Edição Lei & Justiça, Livia Sant’Anna Vaz diz que casos como o de Luiz Gonzaga mostram como a promessa de cidadania feita à população negra desde a abolição da escravidão em 1888 continua sem efeitos mais amplos.
“A existência de pessoas negras sem registro é um dos aspectos do não cumprimento dessa promessa de cidadania. Óbvio que o registro não é suficiente para garantir plena cidadania, mas a sua inexistência tem vários efeitos. Quem não tem um registro de nascimento não tem condições de ter outros tantos documentos como Registro Geral, Carteira de Trabalho, CPF, não pode abrir conta em banco, não pode se matricular numa escola, não pode ter acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS)”, enumera.
Nos últimos anos foram criadas algumas regras que auxiliaram o acesso, como a gratuidade do documento, a presença de registradores em hospitais e maternidades, mas as subnotificações continuam. Dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), divulgados em canais de mídia por conta do tema do Enem indicavam que, em 2000, de cada 100 pessoas nascidas, 20 não tinham o registro civil.
A partir de 2015, ações como a gratuidade e uma maior integração das redes de Cartório têm ajudado a combater a subnotificação, mas ela ainda persiste. Assim, milhões de brasileiros seguem sem se fazer notar pelo Estado, o que é grave especialmente com o crescimento dos índices de pobreza.
“O perfil da população que mais tem dificuldades em acessar direitos, inclusive o registro de nascimento, são pessoas negras e pobres. Este é um problema persistente que o Estado não enxerga como algo importante ou algo estratégico. E aí há viárias ações possíveis e necessárias para que possamos reduzir o número de pessoas indocumentadas”, acrescenta a promotora de justiça.
Livia Sant’Anna Vaz acrescenta que a história de Luiz Gonzaga Pereira aponta para o apagamento da memória de alguém para a posteridade, afinal uma pessoa que não foi registrada não vai estar presente no registro da linhagem dos seus descendentes. Essa tem sido a realidade da maioria de famílias negras que não conseguem estabelecer a sua descendência para além da linha dos bisavôs.
“Essa história de Luiz Gonzaga, um mais velho nosso, um ancestral, me lembra a história de dor das pessoas negras que tiveram a sua identidade, memória, história e ancestralidade roubadas pelo sistema escravocrata porque uma das estratégias desse sistema era retirar os nomes originais das pessoas. As pessoas africanas escravizadas que chegavam ao Brasil nessa diáspora forçada perdiam o direito ao nome africano e recebiam outros nomes e sempre numa menção aos que se tornavam seus proprietários. Maria dos Santos era Maria da família Santos, por exemplo”, diz a promotora.
Ao pedir e conseguir que A TARDE fizesse o registro da sua história, Luiz Gonzaga Pereira talvez não tenha conseguido seu sonhado documento. Mas ao virar protagonista de uma reportagem contribuiu para que ao menos possamos atualizar o debate de quão devastador, em vários aspectos, é negar a alguém o registro oficial da sua existência.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia
Fonte: A Tarde