Leandro Reinaldo da Cunha
Dando continuidade à apreciação dos direitos civis das pessoas trans, tendo o direito à saúde sido o objeto da coluna anterior, compete-nos agora a análise da perspectiva documental da condição dos transgêneros, especificamente no que tange à mudança nos documentos de identificação pessoal da indicação de seu nome e sexo.
Inicialmente é de se consignar que originalmente a discussão do tema assentava-se em uma compreensão lastreada na concepção da imutabilidade (de regra) do prenome, bem como na crença da impossibilidade da alteração dos caracteres sexuais indicados nos documentos. Assim constata-se que a questão versa sobre duas vertentes distintas a serem apreciadas de forma específica.
De um lado temos o nome, entendido como o elemento de identificação pessoal mais característico, composto pelo sobrenome e pelo prenome, o qual tem a peculiar característica de ser detentor de uma sexualidade, sendo possível se afirmar que existem prenomes masculinos, femininos e neutros1.
A coletividade como um todo, portanto, espera que cada pessoa ostente um prenome que seja “compatível” com o gênero que expressa, sendo tal associação realizada automaticamente por todo aquele com quem se venha a interagir. Tal conexão se revela de forma tamanha que uma das hipóteses tradicionalmente autorizadoras da alteração do prenome residia exatamente na existência de um nome vexatório, sendo assim considerado, por exemplo, um “homem com um nome feminino” ou uma “mulher com um nome masculino”.
Evidente que, no seu cotidiano, as pessoas podem apresentar-se com um nome distinto daquele que lhe foi conferido quando de seu registro, assumindo um prenome que lhe pareça mais conveniente. Contudo quando a fonte volitiva do seu intento de ostentar nome distinto daquele que consta de seus documentos baseia-se em sua identidade de gênero há uma resistência social, havendo quem se negue a chamar a pessoa pelo nome que ela deseja, tal qual um “fiscal do nome alheio”, em clara imposição de matiz preconceituosa.
Se José afirma chamar-se João tal situação não gera qualquer impacto social (obviamente não se está aqui tratando do tema sob a perspectiva penal da falsidade ideológica ou de alguma situação conexa). Contudo se asseverar que seu nome é Maria haverá uma persecução no sentido de se “descobrir o seu verdadeiro nome”, vez que tal prenome não seria adequado. Contudo se fisicamente José apresentar os caracteres externos do feminino, dotado de elevada passabilidade quanto a sua identidade de gênero, tal discussão não será entabulada, surgindo, de outra sorte, apenas caso seu “nome original” vier a ser apresentado.
Nesse contexto surge o nome social, “que é aquele pelo qual a pessoa se identifica perante a coletividade, ainda que não se revele seu nome verdadeiro (constante de seus documentos de identificação)”2. Em inúmeros momentos o ordenamento pátrio já reconhece o dever ao respeito do nome social das pessoas trans, determinando que seja esse utilizado para designa-la no serviço público de saúde, nos cadastros eleitorais e na escola, entre outros.
Tal conduta se impõe com o fulcro de “garantir os direitos da personalidade do sujeito quando padeça de uma dissonância quanto a sua identidade de gênero, minorando as consequências danosas do preconceito e discriminação”3. Atualmente, em razão das mudanças relativas à questão do nome que traremos a seguir, sustentamos que a discussão da utilização do nome social encontra-se mitigada exatamente em decorrência das possibilidades da alteração do prenome registrado4.
Evidencia-se, assim, que face a existência de uma “sexualidade do prenome”, bem como de sua automática associação com o gênero expressado pela pessoa, se mostra elementar que pessoas trans pleiteiem a alteração do seu prenome consignado em seus documentos a fim de que ali conste aquele nome social que já vem ostentando, condizente com sua identidade de gênero, atendendo a um dos parâmetros mais elementares da passabilidade.
Ante ao exposto até aqui tem-se pacífico o entendimento de que a existência de um conflito quanto ao nome de alguém apenas se faz presente caso se tenha acesso aos documentos de identificação pessoal do indivíduo ou se este apresentar alguma incompatibilidade com o gênero socialmente revelado pela pessoa. Não é ordinário que alguém questione se o prenome indicado por uma pessoa é verdadeiro ou não, salvo em tais circunstâncias, o que torna absolutamente coerente que o prenome consignado nos documentos seja compatível com aquele que o indivíduo revela para aqueles com quem interage.
Feita essa introdução quanto a questão no nome, cumpre-nos agora apreciar a aposição nos documentos de identificação pessoal da indicação do sexo da pessoa.
De plano questionamos a necessidade de que tal informação seja consignada em tais documentos5, entendendo que, além de ser dado cujo conhecimento se mostra irrelevante para o restante da sociedade, tem o condão de expor informação situada em âmbito dos mais íntimos da existência da pessoa. Por indicar, ordinariamente, a concepção física genital da pessoa (ao menos originalmente, a constatada quando do seu nascimento), revela informação situada na esfera da privacidade, mais especificamente da intimidade da pessoa, a qual tem todo o direito de querer mantê-la dessa forma e não se ver compelida a torná-la pública a toda e qualquer pessoa a quem tenha que apresentar seus documentos.
A imposição de que a informação quanto ao sexo conste dos documentos e a confusão existente entre os conceitos de sexo e gênero no Brasil (conforme indicado em nossa primeira coluna) geram a discussão quanto a alteração da informação consignada nos documentos da pessoa quando esta se reconhece como transgênero.
A necessidade de transgêneros de adequarem seus prenomes e a indicação do sexo em seus documentos de identificação pessoal fizeram com que tivessem que acorrer ao Poder Judiciário a fim de efetivar tais interesses, o que deu azo ao surgimento de teses relacionadas aos critérios que haveriam de ser preenchidos para que seus pleitos fossem atendidos.
Após inúmeras decisões absolutamente conflitantes proferidas pelos juízos de 1ª instância e Tribunais de Justiça, o tema começou a se consolidar em maio de 2017 com o REsp. 1.626.739, que tramitou perante a 4ª Turma Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a relatoria do Min. Luis Felipe Salomão. De maneira extremamente didática e elucidativa, entendeu pela admissibilidade da mudança do prenome e do sexo/gênero nos documentos de identificação pessoal do transexual, mediante seu requerimento, independentemente da realização de qualquer intervenção cirúrgica prévia. Tal decisão paradigmática foi reconhecida como uma das mais importantes dos 30 anos do Tribunal e, para minha enorme satisfação e felicidade, cita por duas vezes o livro “Identidade e redesignação de gênero” de minha autoria na fundamentação.
Pouco tempo depois, em 2018, o tema dos direitos dos transgêneros foi objeto de apreciação em sede de direito internacional pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), mediante a apresentação de resposta à Opinião Consultiva 24/17 formulada pela República da Costa Rica. O posicionamento adotado pela Corte foi no sentido de reconhecer a identidade de gênero como componente dos direitos humanos, passível de proteção, razão pela qual os transgêneros teriam o direito de requerer a adequação de seu nome e gênero em consonância com a sua sensação de pertencimento, mediante sua autodeclaração, sem a necessidade de que seu pleito tramitasse perante o Poder Judiciário, independentemente da realização de qualquer intervenção cirúrgica prévia ou a apresentação de laudos médicos que corroborassem sua afirmação de ser transexual. A Corte ressalta ainda que o acesso aos direitos ali reconhecidos haveria de ser viabilizado de maneira célere e sem obstáculos, como forma de garantir o efetivo respeito aos direitos elementares inerentes à pessoa trans6.
Assim, o entendimento trazido na Opinião Consultiva 24/17 revela a interpretação do Pacto de São José da Costa Rica, revestindo-se de inegável importância, não podendo ser ignorada ou mesmo minimizada por nenhum dos signatários. E sua relevância é inegavelmente considerada no território pátrio, quando, pouco tempo depois, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema da possibilidade de mudança de nome e sexo nos documentos da pessoa trans ao julgar a ADI 4275, vez que inúmeros votos citaram e se utilizaram da Opinião Consultiva 24/17 em sua fundamentação.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal nesse julgamento foi no sentido de que o pleito de alteração do nome e sexo nos documentos dos transgêneros independe da realização de processo transgenitalizador prévio (conforme já se posicionara o Superior Tribunal de Justiça no REsp. 1.626.739), podendo o pedido ser formulado de forma administrativa, diretamente perante o Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante a declaração do indivíduo de incongruência entre o sexo assinalado no momento do nascimento e o gênero ao qual entende pertencer.
Posteriormente o próprio Supremo Tribunal Federal validou o entendimento adotado na ADI 4.275 ao julgar o RE 670.422, em 15 de agosto de 2018, leading case que deu ensejo à Repercussão Geral 761 (Possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo), fixando a seguinte tese.
“i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo a` alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá’ exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;
ii) Essa alteração deve ser averbada a` margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo ‘transgênero’;
iii) Nas certidões do registro não constara’ nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do pro’prio interessado ou por determinação judicial;
iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, cabera’ ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedic¸a~o de mandados especi’ficos para a alterac¸a~o dos demais registros nos o’rga~os pu’blicos ou privados pertinentes, os quais devera~o preservar o sigilo sobre a origem dos atos”.
Em decorrência da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou o Provimento 73, em agosto de 2018, destinado a estabelecer o procedimento a ser adotado pelos Ofícios de Registro Civil quando do requerimento de adequação de nome e gênero formulado por transgênero.
Segundo o provimento o pleito há de ser formulado por maior de 18 anos que não apresente qualquer restrição para a prática dos atos da vida civil, por meio de requerimento direcionado diretamente ao ofício de Registro Civil, pedindo a adequação de seu nome e gênero à sua condição autopercebida (art 2º). Há, no texto apresentado, a possibilidade da inclusão ou exclusão de agnome (como exemplo, as expressões filho, neto), contudo traz vedação expressa à utilização de prenome já adotado por outro parente (visando impedir a homonímia) ou alteração do patronímico.
O provimento determina também que o pedido formulado prescinde de autorização judicial, realização de intervenção cirúrgica, tratamento hormonal ou apresentação de laudos médicos/psicológicos prévios (art. 4º, § 1º), como meio de facilitar ao interessado acesso aos direitos que lhe são tão caros, revestindo-se, ainda, o procedimento de caráter sigiloso (art. 5). Findo o procedimento administrativo compete ao ofício em que se processou a alteração realizar os atos necessários a fim de dar ciência aos órgãos pertinentes das alterações processadas.
Ante a ausência de uma legislação específica tratando do tema o Estado esquizofrênico, mais uma vez, revela sua condição patológica7, apresentando a usual leniência legislativa8 no quanto tange a questões atinentes à sexualidade, fazendo com que muitos cheguem a crer que o Provimento 73/18 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) seria a legislação pátria a tratar dos interesses trans, já que acaba por se estabelecer como o que há de mais próximo a isso em nosso ordenamento.
Importante se consignar que o tema, ainda que parcialmente, foi fortemente impactado pelas recentes mudanças na Lei de Registros Públicos introduzidas pela lei 14.382/2022, vez que resta afastado o princípio da imutabilidade de nome com a nova redação dada ao art. 56 que permite a mudança do prenome aos maiores de 18 anos, imotivadamente e independente de autorização judicial.
Tal alteração legislativa pode aparentar tornar irrelevante as conquistas anteriores, contudo elas continuam importantes, vez que a mudança da Lei de Registros Públicos não faz qualquer menção expressa às questões atinentes à sexualidade, tampouco toca na possibilidade de alteração da indicação do sexo nos documentos, mantendo a relevância do estabelecido na ADI 4.275 e no Provimento 73/18 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Mister ressaltar mais uma vez que persiste a omissão do Estado e sua leniência legislativa, não tendo positivado o tema com o escopo de garantir os interesses e necessidades desse grupo vulnerabilizado, reforçando o nosso entendimento de que a concepção de vulnerabilidade de um grupo social serve para conferir-lhe maior proteção estatal, menos se tal condição for oriunda da sexualidade9.
Assusta ainda mais, no que concerne à indicação do sexo nos documentos, o retrocesso das movimentações recentes do Estado quanto a Carteira de Identidade Nacional (CIN), prevista no decreto 10.977/2022, que determina a indicação expressa do sexo no documento, entre as informações essenciais que devem estar presentes de seu corpo (art. 11), o que se mostra absolutamente desnecessários e ofensivo à intimidade de todas as pessoas.
Patente está que ainda há muito a ser feito visando a garantia dos direitos mais elementares à população trans. A atual realidade jurídica do transgênero no Brasil quanto a possibilidade de alteração de seus documentos de identificação visando a adequação de seu nome e sexo à sua identidade de gênero apresenta alguma evolução se considerarmos a realidade de outrora, contudo tal se dá muito mais pela atuação do Poder Judiciário do que do Legislativo que segue claudicante na atenção aos mais necessitados.
O Brasil ainda está engatinhando na proteção dos interesses e necessidades desse grupo social vulnerabilizado tido como uma minoria sexual, o que impõe uma concentração de esforços a fim de que a dignidade da pessoa humana seja efetivada e a cidadania consolidada.
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1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O esvaziamento do preceito do nome social diante das atuais decisões dos tribunais superiores. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 1011, p. 67-81, 2020, p. 69.
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 172.
3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 172.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O esvaziamento do preceito do nome social diante das atuais decisões dos tribunais superiores. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 1011, p. 67-81, 2020.
5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 186.
6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O posicionamento da Corte Interamericana de Direito Humanos quanto à identidade de gênero. São Paulo: Revista dos Tribunais 991, p. 227-246, 2018.
7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.
8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015, p. 48.
9 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica – Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 – 526, mar. 2022, p. 504.
Leandro Reinaldo da Cunha Professor Titular de Direito Civil da UFBA. Pós- doutorado e doutorado pela PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa “Conversas Civilísticas” e “Direito e Sexualidade”, certificados pelo CNPq. Parecerista. Autor de “Identidade e redesignação de gênero. Aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil” e de “Sucessões. Colação e sonegados”, além de inúmeros artigos jurídicos.
Fonte: Migalhas